Armados e sem controle

terça-feira, 29 de maio de 2012

  • Curso de formação e psicotécnico feito por policiais não evitou tragédia

    Policiais que deram pelo menos 20 tiros em um encontro de motociclistas passaram por curso de formação e foram submetidos a exame psicotécnico para portar arma de fogo. Isso não evitou que eles se matassem e que um inocente também acabasse morto.

    Filmagem de uma testemunha da tragédia mostra os policiais caídos na rua, durante encontro de motoqueiros E o empresário Ronefrancis Bandeira da Silva, baleado nas costas, mesmo sem ter relação alguma com a briga
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    O porte da arma de fogo por policiais em dia de folga é autorizado pela legislação brasileira. Mas, antes de ter o direito de carregar um revólver ou uma pistola na cintura, o servidor recebe treinamento, passa por um curso de formação e acompanhamento psicológico. Depois de aprovado, o policial ainda faz exames médicos periódicos e, se não tiver condições emocionais de continuar com o trabalho, a arma é recolhida pela corporação. Esse acompanhamento, no entanto, não foi suficiente para acalmar os ânimos do policial civil de Goiás Fábio Luciano Augusto, 41 anos, e do policial militar do DF, Jorge Frank Quinto, 45. Eles atiraram um contra o outro, em meio a centenas de pessoas, após um desentendimento motivado por barulho automotivo. O resultado do descontrole foi a morte dos policiais e de um motociclista, além de dois feridos e famílias destruídas.

    O empresário Ronefrancis Bandeira da Silva, 38 anos, não tinha qualquer envolvimento na briga. Ao ouvir os disparos, ele se jogou na frente do filho para salvá-lo (lei matéria na página ao lado). A tragédia ocorreu tarde do último sábado, na Área de Desenvolvimento Econômico de Águas Claras, durante um encontro de motociclistas no Conjunto 27 — e não no Conjunto 28, como indicou a foto publicada na edição de ontem. Um frequentador filmou o momento do socorro a Ronefrancis. Havia muita gente aterrorizada em volta. Cerca de 300 pessoas estavam presentes, a maioria pais e mães de família acompanhados dos filhos. Além dos três mortos, outras duas pessoas, Danilo Sangali, 26, e Mourandon Gonçalves, 35, foram baleados na perna e no braço, respectivamente. Eles estão internados em hospitais diferentes e não correm risco de morte.

    O caso é investigado pela 21ª Delegacia de Polícia (Taguatinga Sul). Por enquanto, quatro pessoas prestaram depoimento, mas a oitiva de outras testemunhas deverá ocorrer hoje. Os dois feridos no tiroteio só devem comparecer à delegacia após receberem alta dos hospitais. Os primeiros relatos na delegacia dão conta de que o PM estava com som automotivo muito alto. Conforme ocorrência policial, durante a tarde, algumas pessoas teriam pedido a Jorge para abaixar o volume, mas, logo em seguida, ele aumentava. O policial civil teria ido ao local e ambos iniciaram uma discussão, “seguida de disparos recíprocos”, de acordo com uma testemunha.

    Para a Polícia Civil, resta agora apurar as circunstâncias do crime e de qual arma partiu o projétil que atingiu e matou o empresário Ronefrancis, uma vez que os autores dos disparos estão mortos. “Pelo que nós temos, não há uma terceira pessoa envolvida. Os dois policiais foram os únicos que atiraram. Vamos aguardar o laudo da perícia, ouvir as testemunhas e encaminhar o inquérito ao judiciário”, explicou a delegada Vera Lúcia da Silva.

    “Lamentável”


    O secretário de Segurança Pública do DF, Sandro Avelar, classificou o episódio como “lamentável”. “O policial é policial 24 horas por dia e tem o dever de atuar mesmo durante a folga, mas é um episódio que nos choca em razão do desfecho trágico praticado por pessoas que deveriam ter controle emocional”, destacou. Sandro Avelar ainda explicou que os servidores da área de segurança passam por avaliação psicológica antes de entrarem na corporação. Depois disso, exames médicos são feitos periodicamente. “Se os médicos constatarem que o policial não tem condições emocionais, a arma é retirada dele, mas esse caso foi um comportamento absolutamente isolado e estamos todos chocados porque partiu de quem deveria dar exemplo”, destacou.

    O coronel Paulo Roberto Batista de Oliveira, corregedor da Polícia Militar do Distrito Federal, explicou que Jorge Frank Quinto tinha permissão para utilizar sua arma de fogo, mesmo de folga e sem farda. “Ele pode e deve portar e agir em situações de risco. Inclusive, eu aconselho que, caso não esteja armado, não se identifique como oficial”, disse. Oliveira salientou que, para ingressar na corporação, o aspirante passa por uma série de testes e exames psicológicos. “Ele deve provar que tem controle emocional, antes de entrar e durante a atividade”, disse. Caso seja reprovado, ele pode ter a posse de arma suspensa por até dois anos.

    Em razão do comportamento no último sábado, o policial civil e o militar poderiam ser responsabilizados. “O sargento poderia até ser afastado da PM e responderia também na Justiça comum”, indicou o coronel. “O caso é raríssimo, principalmente porque os dois se identificaram como policiais. O sargento passou por dois cursos de formação e apresentava bom comportamento”, completou.

    O que diz a lei
    A Lei Federal nº 10.826, de 2003, determina que a regulamentação do porte de arma de fogo para algumas categorias seja indicada pela própria instituição. O decreto nº 5.123, de 2004, prevê que militares das Forças Armadas, policiais federais, civis, militares, bombeiros e policiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal tenham direito ao porte, ainda que fora do serviço. A capacidade técnica e a aptidão psicológica para o manuseio de armas são atestadas pela própria instituição, depois de cumpridos os requisitos estabelecidos pela Polícia Federal. Os servidores destes órgãos transferidos para a reserva remunerada ou aposentados devem submeter-se, a cada três anos, aos testes de avaliação da aptidão psicológica para manter o direito à posse de arma.

    Policial judiciário preso
    Mais um descontrole no uso de arma de fogo foi registrado no dia seguinte ao tiroteio em Águas Claras. O policial legislativo da Câmara dos Deputados Marcelo Carlos de Araújo, 36 anos, teria ameaçado um jovem de 19 anos, em Taguatinga, após suposto assédio à namorada dele. Marcelo foi preso pela Polícia Militar em frente à casa da vítima e portava três armas, sendo duas calibre .380 e uma .40, uma delas da Câmara Federal, onde ele trabalha. No carro de Marcelo, ainda havia uma pistola escondida debaixo do banco do passageiro, com numeração raspada. O policial foi liberado e responderá por crime de ameaça. Em razão de ter ameaçado portando arma da Câmara Federal, o órgão vai instaurar um procedimento administrativo para apurar o comportamento dele. Pelo uso indevido, Marcelo pode se punido com advertência, suspensão e até demissão do serviço público.

    Arma nas mãos

    De acordo com o termo de responsabilidade que assina, o policial, civil ou militar, perde o porte da arma nos seguintes casos:

    Se portá-la, em serviço ou de folga, sob influência de álcool ou qualquer outro entorpecente
    Caso dispare sem necessidade ou por descuido
    Quando a utiliza a arma em atividade estranha ao serviço policial
    Ao ser reprovado no exame psicotécnico

    Periodicidade do exame psicotécnico para policiais em atividade:


    Com menos de 40 anos: a cada dois anos
    Com 40 anos ou mais: a cada um ano

    Renovação da posse de arma:
    Policiais em atividade não precisam renovar
    Policiais afastados, aposentados ou em atividades administrativas renovam a cada três anos

    Falta de equilíbrio

    “Os policiais devem ter bom senso no uso de uma arma de fogo. O que aconteceu no sábado foi a péssima combinação de arma com álcool. Estudos mostram o consumo de bebida presente em quase 70% dos homicídios do Brasil. O que nos angustia num evento como esse é o fato de que ambos eram profissionais da Secretaria de Segurança Pública, tinham treinamento, passaram por avaliação psicológica e estavam autorizados a possuir arma de fogo. O que eles não tiveram foi sensatez e equilíbrio emocional para lidar com a situação. Sou a favor do uso de arma fora do serviço porque é um direito garantido por lei. A gente questiona o porte de arma porque teve um evento que resultou numa tragédia, mas temos muitos exemplos de policiais de folga, armados, que prenderam criminosos e impediram a ação de bandidos nas ruas durante a folga. O triste disso tudo é que eles poderiam ter resolvido a situação numa conversa e essa tragédia poderia ter sido evitada. O caso vai servir de exemplo para os colegas de profissão e para que as instituições sigam com o trabalho de formação e qualificação permanente. Infelizmente, o mal maior aconteceu e os dois policiais pagaram com suas vidas e as famílias deles agora estão sofrendo. O que resta é cobrar para que as instituições façam cada vez mais esse acompanhamento psicológico dos policiais.”

    Marcelle Gomes Figueira, coordenadora de graduação em segurança pública na Universidade Católica de Brasília (UCB)

    Por Mara Puljiz e Larissa Garcia


    Fonte: Jornal Correio Braziliense - 29/05/2012

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